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PEC das Drogas: populismo penal que criminaliza a pobreza

A proposta aprovada pelo Senado foi moldada como uma l๊uva para a lacração dos reacionários nas redes

O deputado federal Orlando Silva. Foto: Mário Agra/Câmara dos Deputados
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Há meses o debate público gira entorno de uma tensão permanente entre os poderes. Ora o Executivo vira alvo de ira de parcelas do Legislativo por supostamente desrespeitar acordos ou contingenciar recursos orçamentários destinados por parlamentares, ora a fricção se dá entre o Judiciário e o Parlamento, sendo o primeiro frequentemente acusado de exorbitar suas competências. A Constituição fala em poderes harmônicos e independentes entre si, sendo que o sistema de freios e contrapesos existe justamente para evitar uma indesejável hipertrofia que sobreponha um poder aos demais. Ou seja, a própria lei maior já vislumbra a tensão inerente às funções de administrar, legislar e julgar, porquanto algum ruído sempre existirá no sistema democrático. A bola da vez é um pretenso avanço do Supremo Tribunal Federal em prerrogativas legislativas, pois, seguindo essa opinião, estaria legislando na prática quando trata de temas sensíveis, como a descriminalização das drogas.

Sobre o suposto ativismo judicial, há que se lembrar que o STF não age de ofício, mas sempre por provocação. Portanto, se de um lado da moeda está a queixa de politização da Justiça, do outro está a judicialização da política, fenômeno pelo qual as decisões políticas tomadas💛 no Congresso acabam questionadas no Supremo. Quem o faz? Muitas vezes os próprios parlamentares e seus partidos.

Então, há que se levar a bola ao chão e manter a frieza, sob pena de julgar de acordo com o nome do processo ou legislar “com o fígado”, o que é péssimo para o Brasil em ambos os casos. Como ensinam os mais velhos, dois erros não fazem um acerto. Veja-se agora o caso do debate na Suprema Corte sobre drogas para consumo pessoal. O Recurso Extraordinário 635659 (Tema 506) foi distribuído em 2011, quando foi reconhecida repercussão geral, e teve voto do relator, ministro Gilmar Mendes, em 2015, longe, portanto, de ser uma carta tirada da manga para afrontar o Legislativo. Mas o pior é o que verdadeiro debate, qual seja, a discussão sobre o Art. 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), foi jogado pelo ralo e virou, na mixórdia das redes sociais, a suposta tentativa de empurrar goela abaixo da sociedade a descriminalização das drogas. Não é! A questão é que, hoje, portar pequena quantidade de droga para consumo pessoal não dá cadeia. Esse foi um avanço aprovado após amplo debate do Parlamento, em 2006, ecoando a noção de que usuário não é criminoso e de que cadeia não é solução para seu caso. Apesar do passo adiante, a lei não trouxe critérios objetivos para diferenciar usuário de traficante, passando para o Judiciário tal definição, caso a caso.

Sabe-se que, particularmente em matéria penal, quanto mais aberto e interpretativo for o dispositivo, maior o risco de abrir flanco ao arbítrio. Na vida real, branco rico virou usuário e preto pobre virou traficante. Simples de entender nos padrões de 🤪um país de mais de 300 anos d🉐e escravidão.

O julgamento, portanto, visava fixar uma quantidade de droga de referência para diferenciar o uso pessoal do tráfico. Excedida a quantidade, a pessoa poderia ser enquadrada como traficante. O foco é garantir provas mais seguras para evitar injustiças, algo que a mim, que vivo no Brasil real e não no imaginário, parece bem razoável. Pois bem, os debates foram misturados e os ânimos, acirrados. Ganhou a opinião pública a ideia de que há uma invasão de competências, furor legiferante do Judiciário, que estaria empoderado demais e querendo se sobrepor a outros poderes. É fácil somar insatisfações, ainda mais nos dias de hoje.

A resposta é a PEC 45/2023, que eleva à Constituição Federal a crimiꦏnali♌zação do porte e posse de qualquer quantidade de droga. O Senado apro🅷vou a medida em tramitação relâmpago, s♏em prazo suficiente para debate e nenhum estudo científico que a ampare.

Se a Câmara repetir esse caminho, não me admiro se daí surgir mais um contencioso entre poderes, afinal, não é porque aprovada no Congresso que a norma é necessariamente constitucional, mesmo sendo PEC. Vejam, existem cláusulas pétreas, entre elas o Art. 5º, nas quais só é possível ampliar direitos e jamais restringir ou suprimir, como pode ser neste caso. Provocado, se for, haverá de fazer o quê o STF, senão dizer a palavra final sobre a interpretação constitucional?

Afora isso, trata-se de má política pública mesmo. Os números são eloquentes quanto ao fracasso da política de “guerra às drogas”. Somos o terceiro país em população carcerária do mundo, mais de 800 mil somando os no sistema prisional e aqueles sob custódia, dos quais 68,2% são pessoas negras, segundo o Anuário Brasileiro de Se🔯gurança Pública 2023. Desse montante, grande parte responde por delitos de menor potencial ofensivo, como porte▨ de pequenas quantias de drogas, furtos etc.

Quais os avanços conquistamos como sociedade com o encarceramento em massa da juventude negra? Ou alguém tem dúvida de que portas e janelas das masmorras se abrirão ainda mais para os “suspeitos de sempre” com essa medida? As cracolândias vão desaparecer de nossas grandes cidades? Temo que não. O narcotráfico sairá enfraquecido? Creio que, muito ao contrário, deve estar exultante com a possibilidade de mais e mais jovens pobres para aliciar e faccionar nas prisões. Aliás, quem mais gosta da criminalização das drogas é mesmo o tráfico ilícito, que lucra bilhões com isso. Moldada como uma luva para a lacração dos reacionários nas redes, a PEC das Drogas é puro suco do populismo penal que criminaliza a pobreza.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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